A função da falta na vida cotidiana
Abrir mão de quem somos ou de quem gostaríamos de ser pode nos custar caro.
Nossa singularidade vem de um pertencimento que, para ser estruturado, precisa antes reconhecer o outro diferente de nós, sobretudo entendendo que, o poder do coletivo, quando se distingue a partir de um desejo de si mesmo, acontece numa dualidade que ao mesmo tempo que encanta, pode nos arrastar para uma onda castradora de nós mesmos que facilmente nos arrastará ao prazer urgente, como os apaixonados que não conseguem enxergar falta ou defeito no outro: “Longe do meu cego desejo, do meu cego amor, não sei o que sinto e o que sou”.
Somos seres desejantes, mas nem tudo que queremos podemos realizar uma vez que as demandas urgentes nos colocam frente a situações individuais ou coletivas que devem passar pelo outro.
Conviver com aquilo que queremos mas muitas vezes não podemos alcançar nos coloca em contato com as faltas que, se olhadas a partir de nós mesmos, nos faz conviver com sentimentos que podem nos ajudar a entender melhor qual é o lugar que queremos ocupar no mundo, e quando conseguindo bancar nossos projetos de vida com ética e respeito aos outros, adentramos num espaço que avança ao encontro de nós mesmos.
Vivemos numa sociedade que quer nos enquadrar o tempo todo em agrupamentos que nos definem, e o que vemos com frequência são pessoas que desejam muito mais porque o grupo a que pertencem “determinam”, do que de fato se acessando compreendem como gostariam de ser.
Frustrações, angústias, vazios, ansiedade, preenchimentos que demonstram vidas vazias que não convencem nem elas mesmas, e revelam uma falta de veracidade no sentido de que mostrar serve para ocultar o próprio ser ou um desejo que já nasceu falido.
Outro dia vi um vídeo muito interessante de uma influenciadora que falava dos casamentos atuais e os pedidos “inusitados” dos noivos que, além de demonstrarem um esvaziamento do sentido da cerimonia, parecem cada vez mais com os “reality show”.
Penso que a qualidade dos desejos descaracteriza a possibilidade de entender o significado das próprias escolhas quando passa pela subjetividade como sinalizador de um preenchimento de espaço onde a falta e o entendimento de onde surgem os desejos está longe de ser alcançado, mas se fossem acessados, poderiam contribuir para a manutenção de nossa saúde mental à medida que podemos nos comunicar com esta frequente necessidade de se mostrar para além de uma divulgação, demonstrando um desejo frenético de ser inédito à espera dos aplausos e um maior engajamento. Qual a função de tudo isto?
A falta é uma condição estrutural do ser humano e está intrinsecamente ligada ao desejo sendo um espaço que serve para podermos compreender quais são as urgências, sobretudo quando ao nos acessar, entendemos a natureza dos nossos anseios e a origem de porque queremos tanto e além da conta, incrementando com excessos enquanto o próprio desejo não está claro nem para o desejante.
Existe uma falta inerente à existência que impulsiona o desejo na busca constante e na insatisfação como completude do todo, e enquanto não olhamos para isto, buscamos completar com os excessos na tentativa de amenizar o sofrimento ou a angústia, quando na realidade, pensar a qualidade de nossos desejos é o que poderia amenizar os nossos sintomas, tão perceptíveis quando expostos por quem sente uma necessidade exagerada de algo e está à procura do irreal que, enquanto neste funcionamento, está a serviço de esconder a origem dos próprios desejos.
Os excessos sempre denunciam muito, e seu pior dano, é nos afastar de nós mesmos.
Música “Onde A Dor Não Tem Razão” Paulinho da Viola.
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