A Desobediência de Calíope

Numa de minhas leituras diárias eu me deparei com uma frase que provocou uma reflexão. Em certo momento da ficção (“A Casa do Mar Cerúleo”) a gata Callíope sequestra uma gravata do protagonista Linus Baker, escondendo-se no jardim. Perseguindo o animal, o humano exige que ele aparecesse… e ele não obedece. E então o narrador observa: “Ela não obedeceu, claro, porque era uma gata, de modo que não ouvia o que lhe diziam”.

Foi essa frase, aparentemente pouco significativa em termos de profundidade, acabou conduzindo a essa reflexão, que peço licença para compartilhar com vocês.

Não se disse, ali na ficção, que Callíope, a gata, não entendeu, mas que ela não ouviu. De forma semelhante há quem diga que quando os portugueses chegaram no Brasil os indígenas não viram as caravelas chegando, porque seus cérebros não conseguiam processar aquela imagem. O que está em questão, nessas ideias de “não ouvir” e “não ver” diz respeito aos limites impostos à própria interpretação.

Quando alguém nos fala algo, ou quando um fato se materializa diante de nós, o que estamos ouvindo e vendo? A realidade?… Provavelmente não. Muitas vezes estamos surdos e cegos àqueles acontecimentos e sequer nos damos conta de que algo foi dito ou algo aconteceu. E mesmo quando nos damos conta de essas coisas aconteceram, vamos interpretá-las segundo restritos limites de nossos mapas mentais individuais.

As divergências geradoras dos conflitos, sejam os individuais, sejam os coletivos, não resultam da oposição de verdades de um lado e mentiras de outro. Como seria fácil se o erro estivesse localizado em algum local específico (uma pessoa, um grupo, uma crença). É por acreditar que o mal está localizado que teimamos em culpar e perseguir os outros (uma pessoa, um a coletividade, um deus, uma religião, uma ideologia).

Na base desse fenômeno temos a provocação Socrática sobre a verdade: frequentemente o que pensamos saber não passa de uma opinião à qual nos apegamos. E o aspecto trágico disso é que basicamente os conflitos humanos resultam da oposição de verdades pessoais ou da imposição de verdades pela cultura vigente.

Talvez possamos reduzir o conteúdo trágico das nossas existências se, ao invés de negar, reprovar, condenar ou atacar o que é diferente, aprendermos a acolher e respeitar profundamente as diferenças. Para isso parece indispensável desenvolver a humildade necessária para reconhecer que aquilo que ouvimos, vemos e entendemos não é exatamente a verdade, mas apenas o que conseguimos ouvir, ver e entender sobre ela.

Autor

Wagner Ramos de Quadros
É presidente da ARCOS e articulista de O Regional.